O corpo feminino e a sua pertença no mundo da linguagem
Reflexão sobre Dissection of Silence de Eldritch Anisette. Ensaio de Sofia Belém.

Esse ensaio surgiu da vontade de, junto com Eldritch Anisette, dissecar o silêncio. Aos poucos fui percebendo que escrever sobre o silêncio é uma tarefa mesmo estranha, uma vez que é uma entidade que carece de linguagem. Qual o sentido então de usar as palavras para o dar significado? Dissecar o silêncio através de uma música é dissecar e analisar a sua ausência, dissecar o que o suja. Não seria simples voltar a pureza de sua essência, pois Eldritch Anisette dissecou primeiro o silêncio, fez que ele se tornasse caos e confusão, para então nos apresentar Dissection of Silence, barulho de 2nd wave emo. Nos encontramos então no campo da linguagem e percebemos a sua força libertadora. É importante frisar que essa libertação só se manifesta em sua forma original na canção, mesmo quando o que eu escrevo transmite muito de suas ideias. O transgressor e subversivo está na sonoridade das cordas e na intensidade dos vocais de Courtney Ellen Miller. É uma experiência estética que habita somente a temporalidade musical.
A música posta na mesa de operações
A música é dissecada em 3 atos.
Primeiro ato:
A mulher nua se encontra no seu estado de permanência, onde o olhar de um espectador a silencia. Nesse estado natural ela é apenas um objeto do olhar, limpa, bonita e pura como as representações classicistas do corpo feminino. Na perspectiva do espectador masculino, a mulher se encontra disposta à objetificação (ou submissão), pois esse olhar ignora o todo do corpo feminino e as suas faculdades de comunicação.
Classicism, romanticism
Portrait of a naked woman
What is seen is beautiful and clean
But does it speak
Between your fingers, what did you see
That seemed to you so naked and willing?
Blot out the mouth: Open and frightening
This silent woman does not speak
Essa introdução é significativa por contextualizar de fato e colocar à mostra a opressão feminina. Uma característica especial da 2nd wave de emo, que não se vê muito em outras waves, são as female-fronted bands (ou co-fronted, e.g. Rainer Maria e Endive) que incorporam a visão feminina em suas canções de diversas formas. Eldritch Anisette reflete o estatuto da mulher em Dissection of Silence da melhor forma que seria no hardcore introspectivo.
Segundo ato:
Aqui a mulher finalmente fala e clama para ser enxergada como sujeito. A visão do espectador vê a forma mas não a matéria, não é capaz de ver a mulher como ser racional, com o seu sentido de eu e uma pertença no mundo da linguagem. Há uma grande deturpação nessa visão que acaba por não decodificar ou contemplar a real existência do eu feminino. De certa forma entramos aqui no campo da mimese (i.e. representação, imitação), a mulher tem a sua própria performance de gênero, mas acontece que o espectador não é capaz de interpretar o real efeito dessa mimese. O espectador/sujeito acaba por projetar outra visão. Mimese não articulada, sem a sua finalidade desejada. Infinitude de dobras, outras cópias são projetadas no pensamento. É um ato violento esse, não só porque a mulher aparece como objeto, mas porque o espectador que contém o poder nesta dinâmica não se conscientiza da opressão que opera. Era preciso de um espelho para o homem? Seriam as pupilas da mulher a superfície mais translúcida para isso?
You don't have to look deep into her eyes to see
She's saying something
[...]
You fucked up her image in your fucked up
Rendition
Just because she couldn't speak doesn't mean you couldn't
You couldn't listen
Terceiro ato:
No momento final da canção a mulher se violenta, se disseca, se desconstrói. Ela se desmonta para se distanciar ao máximo do corpo que sofreu a violência que sofreu. Ela quer representar outra coisa, talvez não ser mais uma representação mas sim uma entidade absoluta. Seria isso uma degradação ontológica inversa? A mulher vai para dentro de si e encontra sua ideia inicial/real. É bom vir de dentro, mas é sujo, é uma visão nojenta para aqueles que se acostumam com as ilusões das cópias das aparências.
In minutes, my dissection
Ripped apart, put back together
One hand, attached at the mouth
Two legs, attached at the knees
Ugly and, ugly and
Ugly and unclean
É com esse ato disruptivo que a mulher por fim encontra a sua voz, é capaz de usar a linguagem à sua vontade. Ela foge completamente do campo do silêncio que a foi imposto. A mulher não grita um desejo seu, mas sim uma verdade. Ela ordena o seu destino livre.
This woman does not speak
Instead she screams:
I will not be your, I will not be your
I will not be your, I will not be your victim
Silêncio que se esconde entre clamores
Para a mulher primeiro veio o silêncio, a vergonha do corpo nu, o desejo que pune.
Só depois que vem o verbo.
Dissection of Silence me faz pensar nos gritos que em matéria se aproximam (ou no caso fazem parte) da linguagem, são onomatopeicos, mas em forma são similares ao silêncio, preenchem o espaço com vibração irracional. Sim, gritos podem ser palavras, como na música onde curiosamente quando a vocalista diz "This woman does not speak/Instead she screams" é um homem quem grita versos inaudíveis. Mas de qualquer forma é isso, a mensagem não é transmitida nesses berros. Há uma cacofonia que nos faz centrar a atenção e perceber que quem ouvimos mesmo é a mulher. Todavia, o grito é a subversão completa do silêncio e por isso se pousa nele para significar. É na diferença de conteúdo que encontramos a similaridade das formas de ambos ocupantes do corpo musical.

Comentários finais
Este ensaio se conclui com uma certa frustração pela incapacidade minha de transmitir talvez na sua essência ou intensidade tudo o que a música significa. Espero no futuro também falar do silêncio como deve ser, ainda vou descobrir como.
Agradeço Rodrigo Tavares por ter me introduzido a Eldritch Anisette, me ensinado sobre hardcore introspectivo e por ter acompanhado a escrita desse ensaio. Este trabalho é dedicado a ele. Espero ainda ouvir muito os seus clamores.
Uau Sofia, muito bom!!